quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Tu viste o que eu vi.




















Não há bela sem senão,
disse alguém.
A convivência leva à concordância. Mesmo que mascarada pelo cansaço, para quem o diz.
A genética é mãe, e o decoro pai.
Não há bela sem senão..., rapaz!, taxativamente.
Ou então; Não há bela sem senão..., escolhe e aceita o lugar que melhor te aprouver, Fernanda., quase taxativamente.
E eles, contentes e felizes, ou pelo contrário, contrariados, lá vão com tal lição na bagagem da indulgência.
E eis que alguém se questiona e vive o sinuoso caminho da normalidade realista e, passo sim passo sim, afirma; Não há bela sem senão!, de facto.
E sai à rua, senhor de sua nova independência, que ainda que pregada às origens do acaso, é sentida e constatada. Fiel, de cabeça erguida e ínfima competência. Como quem ganha o seu primeiro ordenado.
Até que tal vaidade se derreta..., e permaneça em águas de bacalhau, pela entediante repetição. Massacrante sacrilégio sem cobertura idealista ou qualquer espécie de caridade como variante.
Não há bela sem senão..., nem mal que nunca acabe..., nem tão pouco originalidade tão sublime que se veja livre das necessidades base. E da criati
vidade possível e pensada. E dos estalões de chegada e de toda a gente.
Não há.
Mas ainda há! Ainda há quem teime em contrariar. Não contrariar porque sim... Nem tão pouco porque não. Muito menos por alguma coisa ou contra alguém.
Mas fundamentalmente por tudo. Que ainda que não palpável, que não visível... Que ainda que não moral..., ou conseguí
vel... Sabe pela vida.
Que pode ser uma qualquer.
Seja então esta qualquer..., independência atroz. Prisioneira sem fé, viva por dá cá aquela palha..., absorta em águas de bacalhau.


Enfim,
não há bela sem senão!


-Em guerra pelo mesmo; Só se pode perder.-

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Média-sombra

Deixava-se encostar nos ombros da besta, porque seu dorso era quente. Porque este se vergava, se esticava ao comprimento da noite, que ajustava o dia em poucas linhas entrançadas. Numa tira de fios minimalista, bela, com princípio meio e fim.
Encostava-se esgotado, com dificuldade em respirar. E ao contrário da bondade, era acaso sem segurança, sem conforto.

Continuava tenso, embora pendurado no calor do corpo mal esculpido e deselegante do assombro.
Sofreava a bagagem impune e por demais pesada que trazia na alma. E tudo o que ouvia, era apenas o eco dos roncos da respiração da besta sobre o silêncio. Olhava a luz e a sombra no chão.
Alguém abriu a porta ao fundo. Não se mexeu.
Passos apressaram-se a entrar, ressoando como cascos no mármore da sala, e dirigindo-se do lado da penumbra a ele, ouviu;

Desaparece daqui!

Alguém parado, vindo do alto com tom pretenciosamente sereno e concreto encontrava-se perto
.
Finalmente ele mexeu-se. Olhou para cima a custo, e procurou visualmente o vulto que se encontrava agora tapando o único rasgo de luz no espaço.

Procurou-lhe a boca. Procurou-lhe o porte. As feições.
Mas em contra luz não lhe viu nada.
Assim, limitou-se a segredar-lhe com desinteresse na voz e no gesto;

Talvez da próxima vez... Talvez da próxima vez nos encontremos.

E voltou a encostar a cabeça a peso contra o ombro da besta, que colossal, continuava a ressonar, adormecida.

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Círio, que é como quem procura a palavra Vela.

Desta vela faço prosa.
Que da sua ardência, torne então grato o seu intento.
Dotada de perfume, sobrepõe o seu aroma de Inverno ao do pavio pregado que arde ao compasso do gelo, que desliza nas margens do rio. Sem qualquer rima encadeada à sua doçura, faço da sua ponta de fogo, um incêndio. Como se dele não esperasse danos. Nunca mais. Nem dor, nem gritos. Como se dele pudesse viver sem que a carne me ardesse.
Só de olhar, faço a prosa. Verso incute à rima. E a rima não acontece. Faz-se. Ainda que naturalmente.
Acendi a vela sobre o tapete estendido no soalho.
E sentei-me a olha-la sem redor.
Esperava adormecer com o embalar do ritmo a que o pavio se deixava silenciosamente arder.
Deixava a cera chorar por mim. E já de olhos fechados, não lhe conhecer mais as cinzas. Como se de nunca se tratasse.
Nunca poesia rimada. Nunca prosa sem incêndio.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

"Foda-se" de Millôr Fernandes (adaptado)

O nível de stress de uma pessoa é inversamente proporcional à quantidade de “foda-se!” que ela diz.

Existirá algo mais libertário que o conceito do “foda-se!”?

O “foda-se!” aumenta a minha auto-estima, torna-me uma pessoa melhor. Reorganiza as coisas. Liberta-me.

“Não queres sair comigo?! – então, foda-se!”

“Vais querer mesmo decidir essa merda sozinho(a)?! – então, foda-se!”

O direito ao “foda-se!” deveria estar assegurado na Constituição.

Os palavrões não nasceram por acaso. São recursos extremamente válidos e criativos para dotar o nosso vocabulário de expressões que traduzem com a maior fidelidade os nossos mais fortes e genuínos sentimentos. É o povo a fazer a sua língua. Como o Latim Vulgar, será esse Português Vulgar que vingará plenamente um dia.

“Comó caralho!”, por exemplo. Que expressão traduz melhor a ideia de muita quantidade que a expressão “comó caralho!”?

“Comó caralho!” tende para o infinito, é quase uma expressão matemática. Senão vejamos:

“A Via Láctea tem estrelas comó caralho!”

“O Sol está quente comó caralho!”

“O universo é antigo comó caralho!”

“Eu gosto do meu clube comó caralho!”

“O gajo é parvo comó caralho!”

Entendes?

No género do “comó caralho!”, mas, no caso, expressando a mais absoluta negação, está o famoso “nem que te fodas!”.

Neste caso, nem o “Não, não e não!” e tão pouco o nada eficaz e já sem nenhuma credibilidade “Não, nem pensar!”, o substituem.

O “nem que te fodas!” é irretorquível e liquida o assunto. Liberta-te, com a consciência tranquila, para outras actividades de maior interesse na tua vida. Um exemplo: aquele filho pintelho de 17 anos atormenta-te pedindo o carro para ir surfar na praia? Não percas tempo nem paciência. Solta logo um definitivo e esclarecedor: “Huguinho, presta atenção, meu filho querido, nem-que-te-fodas!”. O impertinente aprende logo a lição e vai para o Centro Comercial encontrar-se com os amigos, sem qualquer problema, e tu fechas os olhos e voltas a curtir o teu CD (…)

Mas há outros palavrões igualmente clássicos. Pensa na sonoridade de um “Puta que pariu!”, ou o seu correlativo “Pu-ta-que-o-pa-riu!”, falado assim, cadenciadamente, sílaba por sílaba.

Diante de uma notícia irritante, qualquer “Puta-que-o-pariu!”, dito assim, põe-te outra vez nos eixos. Os teus neurónios têm o devido tempo e clima para se reorganizarem e encontrarem a atitude que te permitirá dar um merecido troco ou livrares-te de maiores dores de cabeça.

E o que dizer do nosso famoso “vai levar no cu!”? E a sua maravilhosa e reforçadora derivação “vai levar no olho do cu!”?

Já imaginaste o bem que alguém faz a si próprio e aos seus, quando, passado o limite do suportável, se dirige ao canalha do seu interlocutor e solta um: “Chega!! Vai levar no olho do cu!”?

Pronto, tu retomaste as rédeas da tua vida, a tua auto-estima. Desabotoas a camisa e sais à rua, o vento a bater na face, o olhar firme, a cabeça erguida, um delicioso sorriso de vitória e um renovado amor-íntimo nos lábios.

E seria tremendamente injusto não registar também aqui a expressão de maior poder de definição do Português Vulgar: “Fodeu-se!”. E a sua derivação, mais avassaladora ainda: “Já se fodeu!”.

Conheces definição mais exacta, pungente e arrasadora para uma situação que atingiu o grau máximo imaginável de ameaçadora complicação?

Expressão, inclusivé, que uma vez proferida insere o seu autor num providencial contexto interior de alerta e auto-defesa. Algo do género de quando estás a conduzir sem os documentos do carro, sem carta de condução e ouves uma sirene da polícia atrás de ti a mandar-te parar. O que dizes? “Já me fodi!”.

Ou quando te apercebes que és de um país em que quase nada funciona, o desemprego não baixa, os impostos são altos, a saúde, a educação e a justiça são de baixa qualidade, os empresários são de fraca competência e procuram o lucro fácil e em pouco tempo, as reformas têm de baixar, o tempo para a obter tem de aumentar, a população não tem consciência de cidadania e engana as finanças, rouba o Estado e não contribui para o país como deveria..., tu pensas “Já me fodi!”.

Então:

Liberdade

Igualdade

Fraternidade

e

foda-se!!!

Mas não desesperes: este país ainda vai ser “um país do caralho!”.

Atenta no que te digo.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Reafirmação descendente

Cansaço. Até de tentar sentir. Ou de simular não sentir. Ou ambas. Ou nenhuma.
De cores que não são cores.
Histórias que não são histórias.
De trocas que não mexem com o que quer que seja. E que mudam tudo de sítio outra vez.
E dias, que ainda que sendo dias, não me vingam do frio.
Que ainda que sendo uma lufada de alma, não me traz o que deixei por aí e do qual nunca mais soube nada.
Nem cheiro.
Nem calma.
Nem coisa nenhuma.
E tudo ao mesmo tempo.
Cansaço, só ele mesmo, assim,
Cansaço.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Percepção

Evacuados todos os efeitos visuais, percebemos como a voz humana pode ser o mais invasivo, em termos espaciais, de todos os materiais.


Em, Fazer coisas com as palavras, de Ricardo Nicolau

( Análise da exposição Words of Gardens de Luísa Cunha)

sábado, 11 de dezembro de 2010

Daltonismo

Rastejas calma e dissimuladamente através das ervas daninhas. E mesmo que já secas, sorves em ti também a seiva que as abrilhantava de verdura e fluidez.
Envelheces com elas. Acinzentas com a pedra. Monopolizas em todo e qualquer chão. E voltas à verdura da tenra relva, de igual em igual. Em.
Tal e qual o estado vegetativo aos olhos de quem passa e não te vê.

És falaz por eminência.
E da inteireza por onde passas e paras, cumpres elegantemente com fraudulência.
Sem completar ou compor, não erras. Simulas cumplicidade com semelhança.
Um dia passo, olho, e fazes-me vacilar... Pôr até em causa a autenticidade da aproximação. Que decerto questionável, validará com a mesma eficácia o tacto..., que rapidamente usarei, fazendo da cor, forma.

E então?
Achas que ceda, ou tu contrastes?
Achas que algum de nós fuja, camaleão?

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Duas raízes do mesmo vaso.


Do mesmo que abre a porta e põe o vinho na mesa, subtrai o excesso de boa vontade. Se dele aceitas, soma-lhe o sorriso. Se lá e com ele te sentas e bebes, tira o casaco com a mesma dificuldade com que tentaste vestir e despir roupa quando a tua mãe te ensinou. Pela primeira vez. E com a mesma convicção, não coloques o casaco no cabide.
No mais pequeno engano reside a maior das fidelidades.

Origem, é saber que o vinho é mais velho que tu.
Ainda que sejas tu que o abras e degustes. Princípio, é saber que do nada, só se crê ter sido formado o Universo.
E nem esse.

domingo, 5 de dezembro de 2010

E assim se faz o dia.

Há um pequeno desacerto que vive o medieval da minha alma. Qualquer coisa como uma vida passada que nunca existiu, mas que ainda assim foi condenada pela Inquisição, na fogueira.
Não me importava de ter vendido galinhas e bugigangas num mercado de rua, nómada. Não me importava de ter roubado pão e ouro das bancas de alguém, vestida de trapos imundos. Não me importava até de ter sido senhora realeza do castelo escuro e gelado. Ou quiçá fiel servo.

Fiel?
Seria um total desajuste até à forca da praça. Até à condenação. E que vocês me valham, porque nada de mais louvado me conseguiriam dar.

Não que ansiasse a morte torturante a vos vergar a coluna vertebral. Não que julgasse justo me cortarem néscios de verdade, a garganta esculpida de veias e artérias a latejar de vida.

Não.
Mas de vocês, nada mais teria. E a dado certo, só a carta errada.
A minha. A batota fidelíssima.
O negrume e porcaria medievais não são mais que a vossa gentileza comercial de sorriso de esmalte.

Tragam-me os dentes podres! A lacuna das pernas torcidas. Desfigurações mentais e físicas. Expressões horripilantes e desalentadas.Tragam-me a mais verdadeira feiura. A mais imperfeita realidade. A mais sebenta paisagem.
Porque assim todos verão. Todos saberão.
E mal o tempo passe..., mal o tempo crie raízes no mais completo cérebro... Esta será a casa de todos.

E ainda que não haja bancos, cadeiras e poltronas suficientes para todos os que no seu interior se apertam, estes sorrirão contentes aquando o soar da musiqueta do jogo das cadeiras.

E ainda a correrem desvairados em círculos, saberão por fim sentar-se à chuva e ao frio.

Casa são paredes. Não tecto.
E se ao céu erguesse as mãos, seria brindada com um pequeno e mais miraculoso pedaço de merda, de um qualquer pombo, um ainda afortunado voador que usufrua do limbo entre a liberdade terrestre e o caçador.


E assim se faz a noite.