sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Última


Nada para lá do veneno da penetração. A fenecer a sexualidade à clareza. Como se esta se servisse de bandeja. De seu cozinheiro esteta, e, também, porém, o sabor que vende não sendo o parisiense..., não, jamais. Um restaurante de largueza indefinida, de gente envenenada pela utopia do desejo. Do traçado.
Saibam...
Comam, seus alarves! Comam!
É veneno, se do outro lado do mundo, vos prometeram um prato de aspecto afim!
Se esse era bom..., porque então não guardaram de seus excrementos? Tardios ou certos, fedorentos ou de aroma suportável passageiro.
Vocês que guardam postais, leques, bonecas nazarenas e coisas de paniquetes...
Ele há fotografias, ele há memórias, ele há geografia e calendários!
É veneno venderem-se, cabrões, filhos de gente com culpas de outros tempos!
Usam-se de vocês, como quem usa as meias do dia anterior, porque estas não se vêem debaixo dos sapatos novos.
Como comer, sem morrer pela vergonha da vaidade? Como morrer envergonhado, com a boca suja e o estômago cheio?
De lado...com um sorriso? Deitado a espernear? Em silêncio? Recto e discreto?
Ridícula a morte. Ridícula porque vocês a sonham tal e qual o prato do qual nunca ganharam o gosto, pelo qual a réplica vos mataria, assim mesmo!
E a merda, afinal são vocês. Com promessas de especiarias do oriente, e colheres de prata.
É Deus quem mais abandonou a sina humana. É Deus quem mais abençoou quem para dentro de si vivia.
E, afinal, o culpado é só o que sente culpa. Eu. O triste. O triste que não provou com vertigens e náuseas. Com vómitos e úlceras. Com mil razões para odiar a gastronomia. Para odiar foder. Como quem enfrenta o seu próprio medo. Ódio pela deslealdade que é o sustento do organismo.
É claro (e de claro, isto terá apenas a embriaguez), que depois do segundo prato, que depois de mim, que depois da foda, que depois do lixo das vossas recordações, para todos sobrará somente a morte.
Escolher a morte, ouvi-vos eu dizer...!
Não creiam escolher a vossa, quando foi pelo estômago que morreram.
Eu...sou só descontente. Igual.
Vocês que sonharam antes de mim..., deveriam me trazer histórias.
Histórias.
Não Carochinhas e recordações de prateleira.

Merda, o nosso ultimo suspiro.

A ceia.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A Lua de Maria Sem - Fragmento I (de João Monge)

DLIW


Se te trouxer como um quadro de Magritte de baixo do braço, trago-te como uma idealização minha. E na verdade, só te vendo através de mim, te poderei conhecer. Se te conhecer e te entender, perco a ilegitimidade suprema de te amar cegamente.
Assim, talvez com isso não te possa seguir pelo trilho inabalável do compromisso e do companheirismo inimputável. Mas jamais duvides que, uma vez conquistada, a minha fidelidade é tão maior quanto a liberdade da minha alma. Vive e morrerá comigo, numa suprema e mais humana certeza de, então, te pertencer. Contempla-me com a honestidade do teu corpo. Deixa-me poder tentar, e tenta-me a puder deixar. Agora que nos vimos.
E eu já gosto de ti.
Pois que isso só a mim me pertence.

Quinta estação

Com as mesmas perícia e doçura com que mergulhava no seu vestido fino e translúcido, salpicado de morangos cor de mel, ela descia as escadas para a rua, de manhã. O senhor Felício, na padaria de frente à porta numero 6, já a esperava todos os dias à mesma hora. A sua não chegada, que já antes acontecera, era sempre presságio de algo de nada bem-vindo no bairro. Qualquer coisa como aquilo que todos os velhos do jardim, donas de casa, jardineiros, merceeiros e até os vagabundos da praça, comentariam com a devida vizinhança por meio de susurros, não vá o diabo tecê-las.
Das primeiras e ultimas vezes que Astréia se recusou a aparecer por força de inconvenientes maiores, desgraças inconcebíveis se abateram nas mentes de todos os sobreviventes pacatos do pequeno bairro, onde vivia.
Ora Astréia perdera sua mãe, por entre lamentos sentidos, e uma onda de negro luto de largo espectro sobre todos..., ora a viagem que fez com o seu pai para as bandas de lá norte, onde este ficou a fazer a vida, diziam, e de onde não mais voltou..., ora um dia incerto, do qual nunca ninguém conseguiu espremer uma lúcida e coerente teoria, que justificasse o facto de Astréia não ter aparecido pela manhã, nessa manhã, na padaria do senhor Felício, para comprar pão fresco e manteiga, como sempre fazia fielmente.
Astréia era assim. Dobrada gentilmente pela simpatia que todos nutriam por ela. Risonha e não se vestia nunca de preto. Todos a conheciam, como uma vaga luminosa que às ruas de terra batida dava uma rotineira alegria de Primavera com cheiro a fruta de pomar.
Sabia-se ser o seu vestido preferido, aquele mesmo, daquela manhã, nova manhã, translúcido, de saia rodada e manga balão, todo coberto de morangos cor de mel sobre um brilhante e claro tom de bege.

- Bom dia menina Astréia!
- Bom dia, dona Úrsula! - respondia, com o seu modesto e sincero sorriso.

E continuava o seu caminho, a olhar o interior das janelas abertas, sem que através delas visse o que para lá delas era guardado. Havia qualquer coisa no esvoaçar das cortinas, no quebrar das portadas, no gemer da madeira dos velhos móveis das casas, que a faziam seguir rumo à vida, assim mesmo, despretensiosamente e sem qualquer motivo aparente.
Havia-o, era certo. Mas chegado o anoitecer, num recolher humilde e ambiente bucólico, Astréia regressava a sua casa com a mesma leveza com que a manhã a levou.
Nunca ninguém ali soube de onde vinha, ou para onde partia tão singela na sua perfeição carregada de proximidades desconhecidas. Contudo, e naquele mesmo lugar, com Astréia isso nunca foi necessário. Nunca antes se tinha ocorrido a tais gentes a vontade da curiosidade, ou o preconceito desocupado que lhes desalentasse o carinho que nutriam pela garota.
Que importa. Era ela. Talvez a quinta estação de um tempo nunca antes pensado, e que garantia a eternidade dos dias iguais, em tal terrinha.
Astréia, por sua vez, e chegada a outra passada manhã, não apareceu à hora de sempre à padaria de frente à porta numero 6, para comprar pão e manteiga.
Que se teria passado? Que terrível infortúnio estaria para vir, que causava tanto e tão comichoso mau estar por todo o bairro?
Os susurros perderam o eco, pois faziam-se existir em uníssono, emparelhadamente.
E dada a falta, não mais alguém soube o que quer que fosse de Astréia, onde todos os rostos se cruzavam com o dela, diariamente, aos mesmos pontos do Sol.
Que seriam dos morangos cor de mel? E do pão fresco e da manteiga?
Já que de Astréia, seria apenas o que Deus guardara e dará... Uma vez que o que deixara, fora a ambiguidade que é a comodidade do amor.
Afinal o passado, foi hoje mesmo.
E a sombra do anoitecer cobriu de novo os telhados daquelas casas, como se Astréia tivesse sido, afinal, mero segredo do Sol que se ia em silêncio.