segunda-feira, 25 de abril de 2011

Pecado Estatal

Serpenteou pela margem de pedra. A margem do canal de água doce que dividia o Estado em duas metades, uma mais pequena que a outra.
Ao chegar às grades do buraco do esgoto, ondulou ligeira e lentamente o seu longo corpo escamado, e entrou por entre uma das fendas.
Perdera a luz do dia, a humidade e imundice do canal que conduzia ao submundo habitado por demais criaturas da podridão, mas livre da imensidão da falta de causas das gentes que têm como básico domínio o ar puro.
Estava agora desprendida de qualquer julgamento quadrúpede. Bípede. Impune a qualquer prenoção aliada à traição. Coisa que não lhe pertencia como opção consciente e ponderada.
Era altura, ela sabia-o.
Para deixar partir todo e qualquer passado que a acompanhasse sem que esta quisesse ou conhecesse. Continuava ali, no seu percurso único e negro, cilíndrico como ela..., a deslizar pedante e lúbrica, na sua convicção de libertinagem revolucionária e genuína.
E sob o Estado daquele país que ninguém sabe qual, ela procurou o ruído exíguo e modesto dos roedores. O Estado, dividido em duas metades, uma mais pequena que a outra, que se assemelhou àquele quase-encontro de uma só vez, sem oportunidade.
E desta maneira, as suas partes distintas, numa integra mentira de igualdade encontraram-se sem saber.
Era fundo, era negro, era sujo. Era inalcançável imaginarem que tal fosse possível.

E ali... ali mesmo, na cegueira da prenoção da origem de tudo o que é humano, aconteceu.
Algures como que então, num sibilar desonestamente inocente, a serpente perguntou;
- Qual a história deste Estado, dividido em duas partes por um canal de água doce, uma mais pequena que a outra?
- Agora que fugiste, não sei. - Respondeu, o que lhe pareceu ser uma ratazana, que perto dela esgravatava excrementos de Homem.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Laranja (quase) Orgânica

Um travo a casca de laranja; Já irremediável o sabor, o bafo, a sobriedade berrante do aparato e da textura...
Eu, limitei-me a trincar de olhos semi-cerrados, na esperança de coisa nenhuma. E assim pareceu-me melhor. Mais que isso, pareceu-me a realização de um sonho adquirido já por toda a gente.
Sabem do que falo? É insípida a normalidade. Mas é disso que falo.
Fugir e não pertencer, fez com que a pequena caixa do peito tomasse contornos mais fascinantes. São trabalho manual de longa data, e de valor elevado. Já nada se vende.
Em troca talvez tenha vendido a vulnerabilidade imediata da minha alma. Ou da minha estupidez. Não saberei.
E assim fico, de peito elegantemente rendado, feito de duro mogno, à espera do verniz. Um dia, quem sabe...
Sonho-te cidade velha, que cheira a rio cinzento e cor quente descascada. Sinto-te cidade amarela que de tão pouco dás-me quase tudo, numa comodidade abstracta e boémia.
E assim... nua, sobre os lençóis encardidos, agora à espera da chuva como que de outra coisa qualquer, tenho o meu corpo ainda ressentido e curioso... mais ingénuo que eu. Só assim por si mesmo em mim, e não eu nele. Fico... a morder pacientemente a casca da laranja, à espera que esta se transforme em alguma coisa.
Talvez assassínio instintivo. Talvez verdade genuína. Ou ambas a mesma coisa...
Como se começasse tudo de novo..., agora a partir do fim.
O meu fim, para lá das invasões cronológicas neste espaço, em que me deixo ficar.
Deixo-me ficar...

domingo, 3 de abril de 2011

A casa do Incesto - Anais Nin

(...) Estou gelada e a cabeça cai-me através de uma finíssima película de fumo. Em grande angústia procuro novamente Sabina por entre a multidão sem rosto.

Estou doente da persistência de imagens, reflexos e espelhos. Eu sou uma mulher com olhos de gato siamês que por detrás das palavras mais sérias sorri sempre troçando da minha própria intensidade. Sorrio porque presto atenção ao OUTRO e acredito no OUTRO. Sou marioneta movida por dedos inexperientes, desmantelada, deslocada sem harmonia; um braço inerte, outro remexendo-se a meia altura. Rio-me, não quando o riso se adapta ao meu discurso, mas porque ele se implica nas correntes subjacentes do que eu digo.

Quero conhecer o que lá corre em baixo assim pontuado por convulsões amargas. As duas correntes não se encontram. Vejo em mim duas mulheres bizarramente ligadas uma à outra como gémeos de circo. Vejo-as arrancarem-se uma da outra. Consigo mesmo ouvir o rasgão, a ira e o amor, a paixão e o sofrimento. Quando esse acto-deslocação de repente pára – ou quando deixo de ter consciência do som - o silêncio torna-se então ainda mais terrível uma vez que à minha volta não há senão loucura, a loucura das coisas que atraem coisas de dentro de cada um, raízes que se afastam para crescerem separadamente, tensão provocada para atingir a unidade. (...)