quarta-feira, 24 de março de 2010

Verdades


Assim faz-se melhor.
E há quem seja absolutamente autêntico assim. Bem o sei.
Há até quem se diga vivo pelo sol, e temperamental pela Lua.
Há quem siga os passos do estado da alma, para abarcar todos os sorrisos num só anoitecer. Dança às estrelas, à volta da fogueira do cosmos, total detentor da verdade inquestionável.
Assim fazem melhor. A harmonia humana, meditação sob o lixo doméstico, que mais não é que partilhar em refúgio o que sobrou ao fim do dia.
Assim dizem-se resolvidos. E antes das quatro horas da manhã, há quem deixe o calor do abrigo para recolher ruas fora os restos da cidade.
Assim faz-se melhor.
E mais recusam-se a discutir, assentes na coerência da indolência soberana.
Há quem seja absoluto assim, pois assim faz-se melhor.
Roda-se a palavra amor por tudo o que se faz sentir, multiplica-se por infinito..., e no final de tudo, que se promete breve em alucínio , jaz a alma imaculada de fatalidade peremptória. Limpa de degredo. Larga árvore verde de análogas raízes.
Cândida verdade assumida sob desfalque. O desfalque do sofredor e do sofrido que hesitam o dicionário das emoções. Porque o conhecem por dentro, através da peneira da mágoa, que não diz amo-te. Sabe-lhes inestimável o sabor.
Assim faz-se melhor.
E incalculável será o fim. E autêntica será a morte.
Prudente.
Assim faz-se melhor. Diz quem diz.
Só em não dizer, apaixonadamente.
____
E porque sim...

domingo, 21 de março de 2010

Podia ser outra coisa.

Quase tudo porque agarrei quem fugia.
Quase tudo pois quase tudo só me fazia crer tudo nela, que me dizias.
Na mentira.
A alma vazia que partiu rumo a um Porto...
Belo Porto, que deixou para sempre em si a mágoa de uma promessa que se perdeu.
Só minha.

E quando o autocarro cruza a ponte sobre o Douro..., de novo incho de história.
Por ter desejado veneno, perco agora quem me ouviu, ouvindo-se comigo.
E não só.
E nem tão pouco por isso.

És igual a mim.
E de mim sobra e subtrai...
Sou antes, e amanhã já será outro capítulo.

As palavras cansam. E a mais que a preguiça, podia ser outra coisa.
É cansaço de as juntar.

sexta-feira, 19 de março de 2010

Vestido em Pierrot

Arrogantemente, sei que durante muito tempo existiram pequenos empreendimentos que poderiam ter feito de nós, hoje, mais humanos.
Há pouco e tanto tempo atrás, quando eu apenas queria a ambição incauta, pintaram-me uma máscara de palhaço triste.
Hoje, não tenho direito à elegia considerável. Não fui forçada ao pranto, nem fui pintada por bestas selvagens, que me obrigassem a correr, a rosnar à Lua e ao caçador.
Pintaram-me uma elegante máscara branca e triste, com uma subtil lágrima de escárnio e aversão em subterfúgio, com tinta preta permanente abaixo do olho direito.
Há imenso tempo, talvez antes de ontem..., ofereceram-me ao mero acaso um insípido pierrot de plástico descorado e trapos.
Mal acabado, de roupa aos folhos brancos e pretos e chapéu em fibra brilhante, foi por mim abandonado na velha prateleira.
Um dia vieste ter comigo, estendeste-me a mão, e nela vi uma boneca branca como a cal, sem cabelo, de cara lavada, e um vestido com motivos florais, desbotado, até aos joelhos igualmente incolores. Estava descalça, e não apresentava qualquer rascunho de um sorriso no rosto de plástico. Tinha apenas uma pequena e dócil lágrima preta abaixo de um dos olhos castanhos.
Joana. Joana de seu nome ímpar a qualquer arco-íris, sofisticação articulada ou a longos cabelos platinados. Incomparável a qualquer mutação brilhante ou feliz que me pudessem oferecer.
Era agora a Joana.

Companheira de viagens de quintal, sem mais nada. Por entre os trapos, trazíamos em nós o pequeno sonho de cumplicidade. Admirava a sua elegância despretensiosa, única. Doença sem começo nem objectivo. Apenas ficar ali comigo, para sempre.
O tempo passou, e desde antes de ontem, quem sabe, numa dessas manhãs..., acordei em sobressalto. O meu corpo alongou-se no meu espelho.
Ela tinha desaparecido.
Ainda a procurei por todo o lado e não a encontrei. Estava velha e desfeita. Foi o que me disseram em tom de paciência. Paciência essa a peso de chumbo, que a impaciência de um não que me obrigasse a sair à procura do efémero nunca conseguiu equilibrar.
A par da desordem, tive-vos a vida subliminar. Adoptei a cor, o sarcasmo como coador de tudo o que em mim é inegavelmente genuíno.
Há muito tempo, talvez antes de ontem..., perdi a complacência humana do hino que fez verter a lágrima negra e permanente, que tenho abaixo do olho direito.
Em mim, a Joana avelei no lixo.
Às vezes..., ainda a ouço chorar.

Foto em Deviantart

quinta-feira, 11 de março de 2010

Mel


Ninguém é completamente feliz, pois não?

Nem os heróis dos clássicos da grande tela..., nem a personagem linda e corada, de caracóis loiros ao vento, do velho romance de cabeceira. Nem o remate momentaneamente reconfortante do E viveram felizes para sempre dos contos de fadas, é sequer uma promessa de Paraíso.
Nem as abelhas são completamente felizes na sua legítima e competente missão. Também sentem a morte, e o perigo, a infertilidade e a inconsciência humilde.
Porque o seriamos nós? Nós, que nem sequer tivemos o (in)digno direito à predestinação saudável...!
Trago o infortúnio todos os dias escondido no fundo do peito. E sei que todos os dias perdi alguma coisa apenas por sorrir e ganhar mais um dia de vida. Ou algo muito parecido com o mesmo nome.
Sinto essa perda como a ternura de um beijo de boa noite, antes do apagar da luz do quarto. A cada vitória secreta, choro por dentro.

Sabes... é o vento que se faz ouvir em mim. Fala-me de amor e rascunhos... Conta-me histórias de outros lugares e eu sinto-o abraçar-me, e, já envolvida, contento-me com o que me quer dizer. Abraça-me porque é o mensageiro oficial da mentira. E fá-lo com honra, verdade... Sem ele a verdade seca e crua matava-me. E eu... que tinha eu para lhes dizer?
Por vezes, quando me deixa só..., fraca, esqueço-me de o pregar ao mundo. Leviana, mergulho em quem me cativa. E deixo, ignorante, as palavras perdidas ao acaso no silêncio. Não o tenho mais a segredar-me no que acreditar. E num impulso ingrato, deito tudo a perder... numa ousadia impertinente às portas da verdade suprema.
A pena não tarda a ameaçar, e depressa sou obrigada a fugir.

Sou demasiado pouco para me deixar vê-la e ser apenas humana.
O vento contou-me histórias que eu lhes conto como minhas... E abraça-me.
E foi por isso..., foi por isso que nunca fui capaz de o trair, de sequer ousar troca-lo por um só e celeste abraço carnal.
O crime perfeito finge-se sempre à medida da nossa mão.
Não descuides tal motivo...!
Como a abelha que finalmente age de vontade e traça a existência quando pica...
É ingrata a imprevidência!
E eu já não descuido a morte.
Já não descuido o dia...
E daí, que já não me importará a hora...
Foi por isto.
Foi por isto e tanto que, hoje, não te abracei.


Até lá..., acredita que me vou deixando por termo aos poucos, por entre o descuido da, para sempre nossa, utópica liberdade!
É por tal motivo impagável, por ti..., pelo outro..., por ele... E por quem ainda virá... Que certamente valerá a pena morrer!
(Única e suprema certeza.)


Imagem em Deviantart

quarta-feira, 10 de março de 2010

Som de...


Este nevoeiro há um mês, mais de um mês de nevoeiro

não se vê nada
não se vê ninguém
não vale a pena
não se vê nada da janela
mas ouve-se, sim, eu oiço
motores, metal, não sei
passos, às vezes gemidos

Tu não ouviste?

Em, Ana (Artistas Unidos)

quinta-feira, 4 de março de 2010

De mais que o riso


É o exagero que brota prisioneiro nas minhas costelas! É do exagero que subtraio o bom tom! Sim..., o incerto da corda certa. A corda que me dança o corpo numa calmaria que em hipérbole, grita-vos a minha angústia.

Contaram-me, que as grutas e cavernas..., que o choro e a podridão..., a solidão e o queixume..., eram, esses, cordas do diabo. Sonhos desfeitos e malogros do fado e da astenia.
Juraram-me que a abstinência e a morte..., eram comparativas ao abismo. E que o abismo terminava-te o horizonte, numa queda a peso total, gravidade absoluta sobre um corpo impotente. Em jeito de fim, afirmaram-me o negativismo como o tempo perdido da tenra idade, da debilidade do sonhador ingénuo ou do vencido.

Fim, limitavam-me eles... Alucinação feliz, a constante contradição dos problemas simples, retorquíam-me eles.
É com exagero que vos digo que a mim a verdade pouco me diz. E que a mentira tem a perna tão comprida quanto a ilusão da vida.
Falo demasiado de mim, e de mim não conto nada, e de mim enveneno-vos com o supérfluo e com o gasto. E de mim... O que importa de mim?
O que vos importa de mim, se de mim, eu não tiver o que de pior julgais?
Com exagero contei-me uma vez e outra, que com todas as cores se faz o negro.
E quão brilhante o negro que a angústia me dirige a conquistar!

E a quem porventura me ler; não se debrucem..., é exagero!
_____


Sigilosamente, a overdose cíclica dá-te de novo o seco estalo.
Aturdida, paras.
Ris. Ris com vontade, sem a subtileza que te ditam. Sem o motivo que te cravaram na testa.
Mas com a subtileza do exagero. O exagero de quem tem igual orgulho em chorar vigorosamente.


Imagem em Deviantart