segunda-feira, 16 de agosto de 2010

"Não se começa a casa pelo telhado."


Estão todas rasgadas, não tens vergonha?!
Repreendeu-o a mãe, enquanto o despia freneticamente de encontro ao seu colo, com umas novas calças engomadas e a cheirar a amaciador de roupa, penduradas no ombro direito.
Contrariado o menino vestiu-as.
Hoje, saiu à rua, e após trancar num despacho cuidado a porta de casa, avançou para o centro do velho passeio de terra. De costas esticadas, ombros largos, e o identificativo sorriso de esguelha, como quem espera do esperado com o eterno estímulo da expectativa.
Perspectiva. Fio de prumo em contra mão. Mas justo.
Seria um lutador ou um romântico?
Não sei, mas calçava sapatilhas. E que poderia dizer isso?
Sei também que mantinha a mão em concha na alavanca das mudanças do carro, numa subtileza pronta, sempre que parava nos semáforos. Agarrava o volante com uma só mão na maioria do tempo, de olhar concentrado em frente.
Eu sabia que ele era assim.
Não sei se preferia o romance moderno do fora de lei, mundano de estilo, que ama a cima de todas as coisas do universo.
Ou se era o homem da lógica e da matemática.
Não sei se ondulava por entre a ironia das velhas crónicas sociais e estilísticas. Ou se divagava desconfortavelmente no conforto das metáforas do macabro.
Nunca lhe conheci a mesa de cabeceira.
Acredito no Boa Noite dele. Será pacífico e sincero como o andar. Apaziguará a alma a fechar os olhos.
A mãe como mulher e como esposa feliz e cúmplice de um casamento confortável e convicto, conhecia-o melhor que a palma da mão, que raramente fitara com atenção. Não tivera tempo.
E orgulhava-se de todas as vezes que ele a visitava, sorridente, saudável e elegante.
Ele voltava a subir as velhas e estreitas escadas em caracol para o seu antigo quarto no sótão da pequena e familiar casa..., e revia a janela de formato de meia-lua por onde antes esperara horas a olhar para as estrelas e a contar a quantidade de luzes que piscavam e fundiam com a chuva do Inverno, nos postes de electricidade da estrada das traseiras, que trazia àquela terra a alegria de tantos emigrantes no Verão.
Quando desceu para dar um rápido beijo na testa da mãe que se encontrava no seu eterno sofá de sala cinzento, a constatar a passagem do tempo na televisão... Esta fez-lhe pela primeira vez a pergunta.
Gostas de alguma mulher, filho?
O seu olhar era iludido e confuso. Pela primeira vez ele não lhe viu convencionalismo assente na maneira como suportava a expressão dos lábios cansados.
Mãe, as coisas a seu tempo e, na vida...
Filho, continuou a mãe, Eu orgulho-me de ter escolhido. E de ter sido rápido. E de não ter podido ir à Califórnia, ou de não ter podido julgar a vida maior e mais insustentável do que ela é.
No dia em que a julguei séria, mais tarde pude sorrir por não o ser tanto, de facto. E no dia em que a julguei mais larga, vi que tinha um galinheiro e uma horta rica nas traseiras desta velha casa..., e que eu nunca vou deixar secar. Venha qualquer tempestade ou auto-estrada tentar rasgar o que é meu.
Nós estaremos sempre aqui.
O filho, deteve-se alguns segundos fitando ambos os olhos brilhantes da mãe, e acrescentou,
Eu sei que posso contar com vocês. É tarde mãe, tenho de ir...
E com um sorriso indeciso, relativizou o passo em direcção à porta da rua.
Como sempre, olhou para trás, acenou com carinho e saiu.

Maria, sua mãe, ficou a vê-lo afastar-se, directo ao fim do pinhal, findando no horizonte dos olhos.
Na simplicidade da sua pequena janela da sala. Na nitidez da sua condição indiscutível e robusta.

Ao voltar para o sofá, ainda leu no rodapé do noticiário da noite...

Nasceu ontem às duas horas da madrugada, Maria, uma pequena bebé do século XXI, que uns anos mais tarde, continuará a ser injustamente minimizada à sua condição, por qualquer um perdido. Por si mesma, perdida.
Dir-lhe-ão: É emocionalmente injusto Maria. Eis a transparência e genuinidade do teu nome. Maria.
Um dia Maria será incompreendida pela falta de tempo de os querer calar.
Chamarão vezes sem conta: Maria! Maria! Oh Maria! Oh Maria...!, por entre favores e espasmos de prazer.
E perderá a verdade do seu nome, em nome da liberdade.
Maria, ousará vingar num mundo, onde a farão acreditar em nada.

Nasceu ontem às duas horas da madrugada, Maria, uma pequena bebé do século XXI, que um dia ousou apenas querer o que é seu.
Bem-Vinda Maria!


A mãe Maria, esboçou um sorriso impotente e triste, apagou a luz, e subiu as velhas e estreitas escadas em caracol, anseando a sorte como mérito da crença divina.

domingo, 8 de agosto de 2010

un peu de tout... a la totalité des me

.....

Placebo.


Desenhar desespero e fogo ardido com palavras e chamamentos..., não traduziria o que fugiu hoje. Ontem. Desde que vi, que foi sempre... O que fugiu desta carcaça movida pelo vento. Hoje não foram sete, nem meio..., foi um só sopro agreste.

Fui obrigada a fugir.




... Sem o peso do adeus.

De mãos vazias.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Não lhe falei...

E quando me aproximei da grande árvore da margem
Lá estava ela, de novo
Com aquele vestido verde esmeralda de linho fino e translúcido, de que me recordara sempre

Sentada

Sempre dobrada, abraçando as pernas, e de queixo elegantemente pousado nos joelhos flectidos
Posição amargurada que sempre lhe conhecera. De quem sofre por amar de mais a vida, com medo de a querer
Virada para o horizonte, não consegui ver-lhe os olhos...

Mas o lago brilhava

E o Sol já se tinha posto.

domingo, 1 de agosto de 2010

É...


...Tens razão.
Não iríamos conseguir dormir.
E quando individualidades se cruzam..., não penso ceder. Nunca mais. Se tu não dormires, não sentirei mais culpa. Adormecerei antes de o saber.
Não posso mudar nada. Não posso querer mudar nada. E não me vexarei à vã tentativa, contra o sujo muro da tua memória. Da tua essência encardida e velha. Da tua displicência caprichosa. Não.
De que te adianta ver as cores, se não as pintas?
Não as podes saber. E eu não aprecio convictamente quadros brancos.
E a vida, essa, é demasiado larga para me esquecer da paleta atrás da mesa-de-cabeceira.


Não
.


Buraco de alfinete

Inconsolável o som do lamento.
Inconsolável a vontade anti-natura de não escolher quem e como querer.
Minto todos os dias.
Minto-me todos os dias.
Numa incapacidade débil que me arde no ventre e me irriga as mãos de vazio.
E à noite, quando a culpa me abraça e me suga o sangue, sei.
Sei da fatalidade constante.
E sou fraca. Morta.
Sou o engano multi color. Da vida. O anseio da ousadia. O odor da libertação.
E a lua sobre a ponte do Douro, e os lençóis arrancados de uma cama, que não têm como contar uma história, morreram hoje em mim. Comigo.
Como no dia em que contei-me a verdade no rio molecular de enganos, que me conduz ao acaso do desespero. Contra as rochas. Longe da margem.
Não quero ser amada.
Sou a capa das metáforas.
O cerne não esconde nada. Absolutamente nada.
Nem alegria. Nem humanidade. Nem calor. Nem sequer a taquicardia de um coração doente.
Não esconde nada. Nem respira.
Gosto da brisa quente no rosto...
Da música do bar de praia...
De um piano...
De bom gosto e histórias de amor...
De chocolate, e sentir-te a pele...
Então...
Quase que podia dizer amar.
Mas não amo.
Escarro.
Escarro a vida.
Escarro sorrisos.
Escarro a vontade.
Escarro a verdade, e minto indiferença.
Escarro todos os dias...um pouco de mim.
E sinto-me morrer na ilusão suprema de escolher os meus passos.
E hoje, no meio da rua vazia, tentei escarrar de novo...
Mas secara-me a boca.
Secara-me a alma.