sábado, 19 de junho de 2010

Demissão

Este mundo não presta, venha outro.
Já por tempo de mais aqui andamos
A fingir de razões suficientes.
Sejamos cães do cão: sabemos tudo
De morder os mais fracos, se mandamos,
E de lamber as mãos, se dependentes.

José Saramago, em Poemas Possíveis

Carta admitidíssima. Seja da melhor forma.
Com a devida imortalidade do que deixou.
Até lá!


sexta-feira, 18 de junho de 2010

Se penso mais que um momento

...Na vida que eis a passar,
Sou para o meu pensamento
Um cadáver a esperar.

Dentro em breve (poucos anos
É quanto vive quem vive),
Eu, anseios e enganos,
Eu, quanto tive ou não tive,

Deixarei de ser visível
Na terra onde dá o Sol,
E, ou desfeito e insensível,
Ou ébrio de outro arrebol,

Terei perdido, suponho,
O contacto quente e humano
Com a terra, com o sonho,
Com mês a mês e ano a ano.

Por mais que o Sol doire a face
Dos dias, o espaço mudo
Lembra-nos que isso é disfarce
E que é a noite que é tudo.

Fernando Pessoa

quinta-feira, 17 de junho de 2010

O cantar do cuco.


O Sol raia cedo. Hoje esperei que ele chegasse ainda no escuro do meu quarto.

Agora completamente desperta e de olhos bem abertos.
São sete da manhã e já me deitei, e já dormi, e já sonhei, e já acordei.
Ontem mais do que nunca, senti esta necessidade aflorar desesperada, a suar, dentro de mim.
A mais que a obrigação de um dia útil. A mais que quem me quer bem.
Porque sinto-me viver assim. E só assim.
A vontade aplacada de sentir os dias e as noites passarem pela minha madeixa de cabelo despenteada.
Sem isso não tenho nada. O cansaço da vitória percorre como um vulcão em erupção as veias e artérias... Explode no coração. Irriga o cérebro e deixa-me descansar o corpo ao acaso na horizontal.
Não tenho botão on/off. E todos os dias, quase que isso se avizinha como um problema. Como o problema.
Sofro de anestesia natural. Cessa o meu corpo e a minha vontade em sobredoses prazerosas.
Mata-me ao mesmo tempo que me faz vida nervosa.

É assim. Acordar com a certeza de que a paixão se encontra nas vísceras da incerteza.
Que o desejo doloroso e mais fogoso, se encontra na fugacidade de um beijo que carrega e que parte.
Amarga admiração. Doce tentação.
A recordação é certamente mais pesada que o presente.
A minha maior dor não passou. E sinto-me incapacitada de me surpreender com o que vejo, vi e chorei.
O que senti, naquele ano, sentada ao seu lado, sozinha, no meio da ampla plateia do teatro, à luz daquele filme coreano..., é o mesmo que sei agora aqui sentada a ouvir a água do chuveiro a correr.
E de nada vale deixar de amar o que o tempo me deu envolto em laço de veludo.
Sei ser-te inteira ainda que chorando.
Sei guardar a alma ainda que ta espelhe.
Sei sentir-te ainda que lamente.
Sei as linhas da paixão, ainda que tenha perdido.
Só não sei ter-te. Porque o que quero é sempre a mais do que posso.
Tudo o que amo é único. E tudo o que é único não tenho como amar.
Deixa-me ver-te à distância suficiente, para ver o tamanho da tua sombra.
Aqui, sob o Sol.

São sete da manhã..., e agora que o Sol já raiou, vou fechar os olhos de novo.


sábado, 12 de junho de 2010

Sopro...

Eu sou digna do pontapé do retiro.
E isso é excelente.
Oh, não faças de mim objectivo, não...
Que com isso perco o rumo. E se me derem presença constante careço de ausência.
Não quero perder a cor.
Nem saber-me aqui. Com quem quer que seja.
Não percas o brilho com a certeza tosca que nada tem. Que nada usa. Que com nada joga.
Não te limites a olhar-me.
O meu cheiro sente-se de surpresa.
As tuas mãos são o volume do que és. Assim.
Não deixes que te empreste o que amanhã te vai pesar...
Sou mesquinha ao ponto de to cobrar em tecido de linho tingido de ironia e mofo...
Há mais. Quero saber que há mais que eu.
Deixa-me por-me em causa. Deixa-me ficar sem argumentos.
Deixa-me pedir-te.
Quero pedir-te!
Não preciso de te puxar pela gravata para me sentir mulher.
Apaixono-me pelos calções rasgados que caminham em direcção ao vento.
E o vento, não tem destino.
E ainda assim..., sopra e não pára quando abraça.
Não faças de mim chão, que eu quebro.
Não faças de mim amarelo, que eu sou um camaleão.
Olha..., o Sol nasceu de novo... E agora?
Nem te atrevas a responder-me.
Shiu... Ao ouvido.
Até à próxima vez.
Assim.
Delicado e bem gizado, a boiar firme sobre o lago. Como uma flor de lotus.


O amor dá-me tesão.
Manuel Cruz


Imagem em Deviantart

domingo, 6 de junho de 2010

Mesmo ali... Ou por aqui...


Foi a vez de fugir do novo, velho quarto à direita do meu L.
É castanho e canta-me melodias de portadas inúteis, que não fecham.
Diz que...
Plim-plim-plim-plim.
.. regateou-me hoje de manhã à luz do Sol de Primavera, carregado.

Regateou-me pechisbeque.
Pérolas da trisavó da vizinha que sonha com uma viagem a Paris.
Utopia de varanda.
No quintal, lá em baixo, vê com orgulho as couves a crescerem fortes e frescas.
Sorri ao pastor das cinco ovelhas. Quatro brancas e uma negra.
E neste gesto vê o sonho da vida tão longe quanto plantado lado a lado com o regador verde de jardim que fazia dançar distraidamente por entre os dedos.
Fazia-se tarde para a hora do almoço.
E do outro lado da rua...
A Senhora da vida estranha e desconhecida, levantara-se num bocejo longo, dirigindo-se por entre as roupas espalhadas pelo chão e pelos móveis, ao largo espelho da cómoda.
Sorriu para o reflexo, e num pretenso rodar de olhos, fixou o óleo da maquilhagem que manchava as gavetas e o lenço de seda da noite anterior.
Coquette, esticou o braço direito o mais alto que pode,num gesto dramático e elegante, como quem em vão pretende tocar o tecto. E embruteceu desleixada, logo de seguida, a figura no espelho, num esgar de boca deletério de satisfação.
Quão sem-vergonha era ela, pensava cadenciadamente a vizinha.
E abanando vigorosamente a cabeça de si para consigo em sinal de reprovação, ainda por detrás da janela, conseguiu desejar-lhe o belo chapéu de tule e veludo, com aquela fina flor vermelho-mogno pregada.
Plim-plim-pe-liiim-pl...
Na varanda, a caixa de música precisava novamente de corda.


Palidez

Se tu imaginasses o meu eterno pesar... Aquele que me acompanha...Pior que a sina de quem nasceu em terra negra. Tão triste como a de quem nasceu no meio da guerra, e antes que tenha tempo de aprender a amar, perca tudo.
Se tu imaginasses que não é exagero a dor que esvazia o meu passado de leviandade salubre...
Se tu soubesses..., o que não tens de saber para que eu consiga sorrir e fazer-te sorrir...
Se tu soubesses que eu sei...
Que eu sei o que sofro porque sofro muito a mais do que eu. Muito a mais do que nós...
Se tu soubesses que sofro porque sei o que não devia saber já...
E sei.
E por saber, sou feliz só em saber que na felicidade, cabe o mundo.
E que o mundo..., com ele trás o infortúnio do que ainda está p'ra vir..., e que eu já sonhei ontem...
A dormir...
Acordada.

E ainda assim, mesmo que eu o faça... Não hesites, hoje, amar-me.
Que quando eu amanhã acordar, farei das horas que nos dás, o mais belo campo
de girassóis.
(O nosso belo. E que os outros que se atreverem a se aproximar de nós, sentirão. Como o tal perfume agridoce.)

Digo-to, em tom de garantia.

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Rochester:
So here he lies at the last.
The deathbed convert.
The pious debauchee.
Could not dance a half measure, could I?
Give me wine, I drain the dregs and toss the empty bottle at the world.
Show me our Lord Jesus in agony and I mount the cross and steal his nails for my own palms.
There I go..., shuffling from the world.
My dribble fresh upon the bible.
I look upon a pinhead and I see angels dancing.
Well..?
Do you like me now?
Do you like me now?
Do you like me now?
Do you like me... now?


Em, The Libertine