sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

"Eu mudo para continuar o mesmo." (disse Sartre)

Era de novo de manhã cedo, e ela já se encontrava em frente ao espelho do bafiento armário da roupa, a exibir, de cuecas relaxadas e soutien um ou dois tamanhos abaixo do recomendável, os seus contornos imperfeitos e sublimemente femininos, sem que tal se lhe assomasse à preocupação.
Girava sobre as pontas dos pés descalços, a olhar com interesse a sua pele branca e pigmentada, que banhava a sua figura com ensejo.
-Maria! Quando desces?! Já te pus as torradas na mesa!
Num ímpeto descomprometido, Maria pegou no relógio de pulso desgastado e castanho que estava sobre a mesinha de cabeceira, e olhou-o rapidamente. Tinha-se distraído de novo com as horas. E como isso era repetidamente aliciante, como a demarcação sonora do frágil ponteiro dos segundos.
Vestiu rapidamente uma camisola de lã alaranjada e desbotada, os jeans habituais, apertou o cinto, pegou na mochila e no casaco axadrezado, e saiu do quarto de rompante.
-Já vai! Estive à procura das minhas botas!
-As botas? Estão aqui em baixo na entrada, Maria!
-Ah, pois... sim, é verdade!
Fingindo-se esclarecida pela primeira vez naquele dia, voltou a entrar devagar e silenciosamente no quarto.
Olhou à volta para as cortinas da janela, colcha e topo do armário, à procura de algo que bem sabia não serem as botas pretas de cordões.
Atirou-se de joelhos para o chão para abrir uma gaveta do armário, e tirou-a para fora. Voltou a despir-se com o mesmo entusiasmo com que se levantou da cama antes, e de novo de cuecas e soutien, deixou-se ficar a olhar para o fundo escuro da gaveta.
-Maria! Então?!
-Er... Dois minutos!
-Vais chegar outra vez atrasada! Despacha-te! Já te penteaste?
-Hum...
De lá de baixo ouviu ainda mais alguns resmungos que se perderam algures nas escadas, e então meteu uma mão dentro da gaveta.
Se de procurar alguma coisa se tratava, Maria disfarçou precisão e foi certeira agarrar qualquer coisa.
O sol já subia no céu à procura das poucas horas que faltavam para o meio-dia.
Na cozinha, ouviu-se alguém descer as escadas, com o passo ligeiro.
-Ah finalmente! Estava a ver que ias ficar no quarto para sempre! Pareces uma menina!
Pedro não a olhou directamente, como que se desculpando, e pegou rapidamente nas torradas já frias em cima da mesa, deixando-as estalarem desleixadamente entre os dentes.
-Bem, vou-me então calçar.- Acrescentou ao sacudir as migalhas da camisola laranja desbotado.
Sentou-se na soleira branca da porta que dava acesso ao pátio, e calçou as botas pretas de cordões. Levantou-se num pulo de mochila às costas, e correu para a paragem de autocarro a alguns metros da casa onde crescera.
Já a correr desajeitadamente olhou por cima do ombro para trás e gritou sorridente;
-Adeus Maria!
, enquanto acenava com a mão que tinha livre, e o autocarro chegava à paragem.
Ao entrar, no meio da mancha de pessoas, ele desejava já ardentemente regressar a casa.
Ao entrar, ela já sentia na cozinha a solidão da casa vazia, à espera da sua chegada ao fim da tarde.

E o sol..., esse, depois do meio-dia, demarcou o seu trajecto descendente, brilhante no seu sistema universal.

3 comentários:

João Ricardo disse...

Mas então as "botas pretas de cordões" não eram da Maria?

blackbird disse...

Precisamente. :)

João Ricardo disse...

No próximo capítulo gostava de saber o que a Maria foi buscar à gaveta! o que será?