quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Acontece


Acontece, mais vezes do que o recomendável para ser belo, sentar-me e olhar em frente para a rua sem a focar. Como quem olha de perto de mais aquilo que não existe nessa mesma rota demarcada pela calçada, e que se calhar nunca por lá passou. Com uma lucidez quase tão absoluta como a morbidez das coisas simples. Acontece também, encostar-me, a seguir com o olhar o fumo do cigarro de todos os que à minha volta se movem. Como se a minha ilha deserta ansiasse pelo despertar dos vulcões das montanhas vizinhas além mar. Numa expectativa adormecida e privada.
Tudo é cinzento. E cinzento é nostálgico e quente como uma velha fotografia de 1920 de alguém que fez parte da nossa família, e que se apresente demasiado sério.
Os olhos brilham-me com igual distancia de tempo e de esperança a ver, a penetrar aquele nevoeiro de pernas e sapatos e roupas e malas sobre o chão à minha frente, perpendicular a mim. Frente a frente como que numa concordância ocasional e sem intenção alguma. Eu e aquela rua. Eu sozinha, e a rua calcada por tanta gente.
Sentindo-lhe o cheiro da chuva sobre pedra e outras coisas, valorizei-nos o silêncio. Como a maior e mais valorosa conversa que alguma vez poderia vir a ter. Dada a semelhança, não nos voltaríamos a encontrar daquela mesma forma.
O que traz a intensidade vulnerável da minha exaustão, sentada ali, de fronte com aquele passeio alegre, onde a chuva caia... Por onde as pessoas corriam a fugir umas das outras sob a intrujice da normalidade comum... Se o passado está vazio de memórias? Se a ladeira não se pode lembrar de tanta gente, pode em tom de graça, ser regada pela chuva e iluminada pelo sol.
Usam-na porque é útil. É cheia de si. É ao comprimento da sua verdade. E não chora.
Tomara eu não chorar como ela por não ter memórias. Tomara as memórias voltarem a juntar-nos ali, perpendiculares, frente a frente, naquela conversa válida de coisas impróprias mas invisíveis aos olhos de quem ali fumava.
Mas eu chorava. E isso, condenava-me.
E se há quem chore porque as memórias os assombram... Eu naquele dia chorava porque não as tinha.
E a sua ausência, demarcava a certeza de que nunca mais me sentaria ali, a ver aquela rua sem a focar.
Com a melancolia intolerável da sua verdade.
Fosse ela qual fosse.
Levantei-me, e nada mais nos unia.

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