segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Crónica (d)a Insensatez

Um corpo.
Branco, em decomposição.
Um cadáver à mercê da liberdade das gaivotas e dos abutres.
Que ainda vê da morte como um limbo de onde não mais conseguiu fugir.
Fugia de tudo.
Das balas, das gentes, das casas, dos parapeitos das janelas, da chuva e do vento, das horas, da carta ao fado, dos correios, dos bancos das estações de comboios.
Tinha tanto medo de ser feliz, que tal já não lhe soprava ao de leve o cabelo e os ombros delicados e descaídos.
Ele só a lera. Lera provavelmente num obituário de um jornal qualquer que ninguém compra, do interior.
Foi lá que a leu, mal aprendeu a ler.
E foi assim. Foi assim que passou a acreditar em tudo o que ninguém compra. Em tudo o que ninguém ouve. Em tudo o que vai na água da valeta a escorrer ao fim de todos os dias. Quando já todos dormem. Quando já todos metamorfoseiam a corrente das coisas simples. Os chamamentos sãos. Para o resto dos seus dias.
Que serão demasiados para tal rendimento.
Foi assim que mentiu à solidão.
E quando as trevas lhe apertaram o pescoço sem qualquer humanidade presente, aprendeu a fugir, e encontrou por fim a claridade que cegava tanta gente. Finalmente sentiu os olhos a cerrarem-se, a visão turva, a claridade a iluminar-lhe os poros.
Seria ali?
E o sim, veio juntamente com a luz.
Sim, estou vivo.
Sim, vejo.
Sim, quero.
Sim, leio.
Sim, tenho.
Tenho pena.
Ao levantar-se da areia, ergueu o braço direito como quem ergue uma bandeira pirata, e cravou um punhal feito de nada no coração.

Um corpo.
Que ainda viu da morte como um limbo que encontrou, como que para sempre.
Sim, estou morto.

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