Este mundo não presta, venha outro. Já por tempo de mais aqui andamos A fingir de razões suficientes. Sejamos cães do cão: sabemos tudo De morder os mais fracos, se mandamos, E de lamber as mãos, se dependentes.
José Saramago, em Poemas Possíveis
Carta admitidíssima. Seja da melhor forma. Com a devida imortalidade do que deixou. Até lá!
OSol raia cedo. Hoje esperei que ele chegasse ainda no escuro do meu quarto. Agora completamente desperta e de olhos bem abertos. São sete da manhã e já me deitei, e já dormi, e já sonhei, e já acordei. Ontem mais do que nunca, senti esta necessidade aflorar desesperada, a suar, dentro de mim. A mais que a obrigação de um dia útil. A mais que quem me quer bem. Porque sinto-me viver assim. E só assim. A vontade aplacada de sentir os dias e as noites passarem pela minha madeixa de cabelo despenteada. Sem isso não tenho nada. O cansaço da vitória percorre como um vulcão em erupção as veias e artérias... Explode no coração. Irriga o cérebro e deixa-me descansar o corpo ao acaso na horizontal. Não tenho botão on/off. E todos os dias, quase que isso se avizinha como um problema. Como o problema. Sofro de anestesia natural. Cessa o meu corpo e a minha vontade em sobredoses prazerosas. Mata-me ao mesmo tempo que me faz vida nervosa.
É assim. Acordar com a certeza de que a paixão se encontra nas vísceras da incerteza. Que o desejo doloroso e mais fogoso, se encontra na fugacidade de um beijo que carrega e que parte. Amarga admiração. Doce tentação. A recordação é certamente mais pesada que o presente. A minha maior dor não passou. E sinto-me incapacitada de me surpreender com o que vejo, vi e chorei. O que senti, naquele ano, sentada ao seu lado, sozinha, no meio da ampla plateia do teatro, à luz daquele filme coreano..., é o mesmo que sei agora aqui sentada a ouvir a água do chuveiro a correr. E de nada vale deixar de amar o que o tempo me deu envolto em laço de veludo. Sei ser-te inteira ainda que chorando. Sei guardar a alma ainda que ta espelhe. Sei sentir-te ainda que lamente. Sei as linhas da paixão, ainda que tenha perdido. Só não sei ter-te. Porque o que quero é sempre a mais do que posso. Tudo o que amo é único. E tudo o que é único não tenho como amar. Deixa-me ver-te à distância suficiente, para ver o tamanho da tua sombra. Aqui, sob o Sol.
São sete da manhã..., e agora que o Sol já raiou, vou fechar os olhos de novo.
Eu sou digna do pontapé do retiro. E isso é excelente. Oh, não faças de mim objectivo, não... Que com isso perco o rumo. E se me derem presença constante careço de ausência. Não quero perder a cor. Nem saber-me aqui. Com quem quer que seja. Não percas o brilho com a certeza tosca que nada tem. Que nada usa. Que com nada joga. Não te limites a olhar-me. O meu cheiro sente-se de surpresa. As tuas mãos são o volume do que és. Assim. Não deixes que te empreste o que amanhã te vai pesar... Sou mesquinha ao ponto de to cobrar em tecido de linho tingido de ironia e mofo... Há mais. Quero saber que há mais que eu. Deixa-me por-me em causa. Deixa-me ficar sem argumentos. Deixa-me pedir-te. Quero pedir-te! Não preciso de te puxar pela gravata para me sentir mulher. Apaixono-me pelos calções rasgados que caminham em direcção ao vento. E o vento, não tem destino. E ainda assim..., sopra e não pára quando abraça. Não faças de mim chão, que eu quebro. Não faças de mim amarelo, que eu sou um camaleão. Olha..., o Sol nasceu de novo... E agora? Nem te atrevas a responder-me. Shiu... Ao ouvido. Até à próxima vez. Assim. Delicado e bem gizado, a boiar firme sobre o lago. Como uma flor de lotus.
Foi a vez de fugir do novo, velho quarto à direita do meu L. É castanho e canta-me melodias de portadas inúteis, que não fecham. Diz que... Plim-plim-plim-plim... regateou-me hoje de manhã à luz do Sol de Primavera, carregado. Regateou-me pechisbeque. Pérolas da trisavó da vizinha que sonha com uma viagem a Paris. Utopia de varanda. No quintal, lá em baixo, vê com orgulho as couves a crescerem fortes e frescas. Sorri ao pastor das cinco ovelhas. Quatro brancas e uma negra. E neste gesto vê o sonho da vida tão longe quanto plantado lado a lado com o regador verde de jardim que fazia dançar distraidamente por entre os dedos. Fazia-se tarde para a hora do almoço. E do outro lado da rua... A Senhora da vida estranha e desconhecida, levantara-se num bocejo longo, dirigindo-se por entre as roupas espalhadas pelo chão e pelos móveis, ao largo espelho da cómoda. Sorriu para o reflexo, e num pretenso rodar de olhos, fixou o óleo da maquilhagem que manchava as gavetas e o lenço de seda da noite anterior. Coquette, esticou o braço direito o mais alto que pode,num gesto dramático e elegante, como quem em vão pretende tocar o tecto. E embruteceu desleixada, logo de seguida, a figura no espelho, num esgar de boca deletério de satisfação. Quão sem-vergonha era ela, pensava cadenciadamente a vizinha. E abanando vigorosamente a cabeça de si para consigo em sinal de reprovação, ainda por detrás da janela, conseguiu desejar-lhe o belo chapéu de tule e veludo, com aquela fina flor vermelho-mogno pregada. Plim-plim-pe-liiim-pl... Na varanda, a caixa de música precisava novamente de corda.
Se tu imaginasses o meu eterno pesar... Aquele que me acompanha...Pior que a sina de quem nasceu em terra negra. Tão triste como a de quem nasceu no meio da guerra, e antes que tenha tempo de aprender a amar, perca tudo. Se tu imaginasses que não é exagero a dor que esvazia o meu passado de leviandade salubre... Se tu soubesses..., o que não tens de saber para que eu consiga sorrir e fazer-te sorrir... Se tu soubesses que eu sei... Que eu sei o que sofro porque sofro muito a mais do que eu. Muito a mais do que nós... Se tu soubesses que sofro porque sei o que não devia saber já... E sei. E por saber, sou feliz só em saber que na felicidade, cabe o mundo. E que o mundo..., com ele trás o infortúnio do que ainda está p'ra vir..., e que eu já sonhei ontem... A dormir... Acordada. E ainda assim, mesmo que eu o faça... Não hesites, hoje, amar-me. Que quando eu amanhã acordar, farei das horas que nos dás, o mais belo campo de girassóis. (O nosso belo. E que os outros que se atreverem a se aproximar de nós, sentirão. Como o tal perfume agridoce.) Digo-to, em tom de garantia. __ Rochester: So here he lies at the last. The deathbed convert. The pious debauchee. Could not dance a half measure, could I? Give me wine, I drain the dregs and toss the empty bottle at the world. Show me our Lord Jesus in agony and I mount the cross and steal his nails for my own palms. There I go..., shuffling from the world. My dribble fresh upon the bible. I look upon a pinhead and I see angels dancing. Well..? Do you like me now? Do you like me now? Do you like me now? Do you like me... now?