sexta-feira, 19 de março de 2010

Vestido em Pierrot

Arrogantemente, sei que durante muito tempo existiram pequenos empreendimentos que poderiam ter feito de nós, hoje, mais humanos.
Há pouco e tanto tempo atrás, quando eu apenas queria a ambição incauta, pintaram-me uma máscara de palhaço triste.
Hoje, não tenho direito à elegia considerável. Não fui forçada ao pranto, nem fui pintada por bestas selvagens, que me obrigassem a correr, a rosnar à Lua e ao caçador.
Pintaram-me uma elegante máscara branca e triste, com uma subtil lágrima de escárnio e aversão em subterfúgio, com tinta preta permanente abaixo do olho direito.
Há imenso tempo, talvez antes de ontem..., ofereceram-me ao mero acaso um insípido pierrot de plástico descorado e trapos.
Mal acabado, de roupa aos folhos brancos e pretos e chapéu em fibra brilhante, foi por mim abandonado na velha prateleira.
Um dia vieste ter comigo, estendeste-me a mão, e nela vi uma boneca branca como a cal, sem cabelo, de cara lavada, e um vestido com motivos florais, desbotado, até aos joelhos igualmente incolores. Estava descalça, e não apresentava qualquer rascunho de um sorriso no rosto de plástico. Tinha apenas uma pequena e dócil lágrima preta abaixo de um dos olhos castanhos.
Joana. Joana de seu nome ímpar a qualquer arco-íris, sofisticação articulada ou a longos cabelos platinados. Incomparável a qualquer mutação brilhante ou feliz que me pudessem oferecer.
Era agora a Joana.

Companheira de viagens de quintal, sem mais nada. Por entre os trapos, trazíamos em nós o pequeno sonho de cumplicidade. Admirava a sua elegância despretensiosa, única. Doença sem começo nem objectivo. Apenas ficar ali comigo, para sempre.
O tempo passou, e desde antes de ontem, quem sabe, numa dessas manhãs..., acordei em sobressalto. O meu corpo alongou-se no meu espelho.
Ela tinha desaparecido.
Ainda a procurei por todo o lado e não a encontrei. Estava velha e desfeita. Foi o que me disseram em tom de paciência. Paciência essa a peso de chumbo, que a impaciência de um não que me obrigasse a sair à procura do efémero nunca conseguiu equilibrar.
A par da desordem, tive-vos a vida subliminar. Adoptei a cor, o sarcasmo como coador de tudo o que em mim é inegavelmente genuíno.
Há muito tempo, talvez antes de ontem..., perdi a complacência humana do hino que fez verter a lágrima negra e permanente, que tenho abaixo do olho direito.
Em mim, a Joana avelei no lixo.
Às vezes..., ainda a ouço chorar.

Foto em Deviantart

1 comentário:

Anónimo disse...

Este texto está tocante.
Parabéns, não por escreveres muito bem...mas pela capacidade incomum que tens de "dizer a vida".

beijo*

Cat