domingo, 29 de novembro de 2009

Estação Sem Nome


Quando naquela manhã hostil e fria fugia pelas ladeiras daquela que não era mais uma cidade, senti o gelo a quebrar-se no meu rosto inundado em suor, e seco do que mais poderia sobrar da minha essência, vi a plataforma dos padrinhos da razão para lá da vida. A vida, essa camada de nevoeiro que se atravessara no meu caminho.
Corria o mais depressa que a minha marioneta conseguia perante as ordens autoritárias do meu cérebro.
Finalmente, alcancei aquela plataforma enegrecida pelos inúmeros vultos impenetráveis e sebentos, que nela se arrastavam num guincho de faca afiada sobre pedra.
Esperei o que me pareceu ser um segundo escamoteado pelo destino, pelo cobiçado comboio... Cobiçado por detrás de mesas de bares da estrada, mesas de whisky, jogo e vício, salas de bocas vermelhas de baton de prostituta...
Num suspiro sufocado de alívio, de quem foge do tempo, ouvi aproximarem-se a aclamada locomotiva e o girar das rodas a alta velocidade sobre carris. Senti o odor do carvão, como quem pela primeira vez morre na fogueira vitorioso, por uma causa nobre, única e incontestável.
E foi então, que um clarão de luz encheu a humidade daquele negrume que em pânico se escondeu incomodado por detrás dos umbrais.
Sem hesitar, deixei-me mastigar pelos vultos que rapidamente se amontoaram nas entradas do comboio iluminado, agora parado, enorme.
Entrei na primeira porta que consegui.
Estava calor lá dentro. Não via mais o vapor do meu bafo, via as minhas mãos livres de malas, os meus joelhos livres de dor, ouvia as gargalhadas de inúmeras e diferentes bocas de saúde em faces rosadas. Respirei fundo e sentei-me. Arrisquei olhar o meu reflexo na janela embaciada, e, de repente, não era mais de noite. Não era mais uma penosa e escura manhã indefinida de Janeiro. Já não cheirava mais a esgoto, nem os meus pulmões suplicavam por ar. Pela primeira vez em tanto tempo indeterminado, senti o meu corpo coberto de carne, percorrido alegremente por sangue vermelho escarlate. Sorri e olhei para o lado;
E lá estavas tu. Tu, a ilusão de óptica do duplo vidro da janela. Tu por quem voltei tantas e tantas vezes de onde nunca parti sem saberes. Tu, para onde nunca voltei. Tu, que mais uma vez me olhavas nos olhos e me engolias o âmago, suspirando de volta borboletas de ar quente, de uma aura tão tua, tão minha, tão tu e eu. Adormeceram-me de novo os dedos dos pés com o teu calor, redobrou-se o brilho da minha retina envernizada pela tua alma.
Somamos num abraço, e nele, coube o sopro das memórias. E ali, coube o mapa da linha da minha mão e da tua. Ali, apertaste-me contra o teu peito acelerado pelo inexplicável.
Ia-mos a grande velocidade.
Mil vezes maior do que eu, e sem qualquer aviso, senti a carne a ferir em cortes agoniantes de uma dor ardente. Os teus dedos cravados nas minhas costas, cravavam-me agora aguçadas e longas unhas, como traiçoeiros dentes de cobra portadores de veneno fatal. O teu doce rosto quente espetava-me agora uma rude e desgastada caveira branca como a cal na minha face esquerda. Gelei. As gargalhadas cessaram em compassados gemidos escondidos longe de mim.
O comboio abrandou aos solavancos e a luz cessou concomitantemente com os meus sentidos.
Quando tudo parou, já o meu coração estava esverdeado e morto no meio do chão sujo.
Certeira, de novo a brisa gelada e frívola percorreu as carruagens abandonadas. Abandonadas por qualquer sinal de vida, rasto, ou história...
No meio daquele, de entre tantos outros destinos, desmaiado sob um banco de passageiro fantasma, podia ler-se num velho papel amarrotado pelas reminiscências:

Pudesse o passado deixar de ser o presente das bagagens.
Nunca teria entrado neste comboio. Nunca te teria conhecido.

Nunca ninguém soube do paradeiro de tal comboio sem volta.
Nunca ninguém leu tal papel.


Imagem em Deviantart

2 comentários:

Anónimo disse...

Adorei!
Efeitos da fita da cassete,k so não se gasta,pk n pode voltar atras nem comer estratos d filme.

Rui Campos

Anónimo disse...

Li duas vezes sabes...
Bem...fantastico!
Os multiplos significados que consegues dar as coisas...aos factos e aos sentimentos...A maneira como "retrataste" o destino e o que nos leva ate ele...Fantastico.

Bjinho grande da Cat