quarta-feira, 28 de março de 2012

Buena-dicha


Discernimento. É o que te faz descer lenta e compassadamente nessa escadaria de ferro, que conta os centímetros, como um banqueiro conta a fortuna.
Estamos os dois na balança da má sorte, quando te fizeste assim, alta, de vestido escorrido pérola, de decote medido ao mais ignóbil detalhe de prudência, e aberto até ao sinal libidinoso da minha mácula.
Perfeitos como nós assim. Tu lá do alto que desces. Eu aqui, numa espera conjecturada, por alguém que não eras tu assim.
Por nós passaram as ordens cinematográficas das grandiosas paisagens. Das pedras brancas, e dos sonhos latentes em romantismo pérfido e infalível. Por nós a lente da indústria da estética. Calculada na ostentação, que espera sempre a loucura e a vénia das multidões ritmadas, aos teus passos selectos na escadaria de metal, mais inquebrável que tu e eu, ali.
Na grande tela, somos sombras. E a sombra brilha, quando a ela é dirigido o aperto da imposição.
Na grande tela, ainda, ficou o ferro, face ao teu vestido ameno e serpenteante sobre o teu corpo, precocemente delineado, em ângulos arredondados do teu esqueleto mais ou menos simétrico.
Continuei à espera que as escadas me engolissem, me desfizessem a pouca elegância da minha espera flácida.
Eu sorria, nas tuas costas. Nas minhas, que afinal, eram as únicas que te sabiam tomar o gosto de cá de baixo.
Ouvir-te o aproximar dos tacões no cinzento bruto e oco, fez-me digno da tua vontade. Passo a passo. Baque a baque.
Roçamos ali os dois a meia medida dos gracejos, por entre gestos que nos venderam. Facilidades da beleza.
E quando te senti no chão que eu pisava, contei cada moeda do meu nobre mas fundo bolso. Eram tantas, minha bela, eram tantas...
E eu ali, no teu chão, de costas para ti, a sorrir do nosso acordo.
Eramos tamanhos, bela, eramos semelhantes. À má sombra da vida que nos trouxe até ali.
Aqui, com o carácter a ferver-nos no sangue, e o discernimento a decair-te aos pés por de baixo do longo vestido. O acaso viu-se pobre.
E eu imundo, tanto para o teu peito, como para a minha cintura. De mãos nos bolsos.
A ser a mais do que tu aos teus pés, e tão mole para as minhas próprias costas.
Discernimento delas. Que te recusaram o teu sorriso, sem o meu.
Dado o golpe da boa sorte, a grande tela caiu.
E de nessa, passaste a descer dessa escadaria todos os dias da minha alma.
Quando a há.

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